quinta-feira, 28 de março de 2013

nossa casa nas estrelas



vovô
meu rosto está colorido
porque ''as lágrimas 
são tintas''
 e você faz falta
como nenhum outro corpo
faria.

o seu afago 
o seu olhar desajustado 
a sua calma e sua aflição
sempre fizeram de você
um rei 
de um mundo
de uma família
de súditos que te colocavam em altares
tão altos
que só eu
com três anos de idade
abraçava.

você vivia a se afogar 
em mares e mares de xícaras
de café 
em rios e rios de riachos 
e açudes 
e acordava antes do sol 
pra ir cuidar da terra
e ouvir o canto dos pássaros
e se fundir 
aos bichos, às plantas 
e voar além do céu.

o seu nariz era comprido 
e apontava sempre pra cima 
e você sempre me aponta pra frente 
ou pro céu estrelado. 

você me segurava firme 
me apoiava em seus braços 
e eu dava os meus primeiros passos 
enquanto você descobria, 
talvez pela segunda vez, 
o que era o amor.

em todos esses tão poucos anos
você conseguiu me transformar 
em uma criança feliz
sempre a me ajudar, 
me acalentar, 
me fazer saber ser 
algo muito e muito além
do que talvez
seja essa coisa que imaginamos parecer
com a vida.

nosso amor, 
vovô, 
não se partirá com uma coluna quebrada;
nossa cavalgada 
não cessará 
se cairmos do cavalo;
nosso suco de caju
sempre virá à boca
mesmo se o copo estiver estilhaçado
e nossa boca ressecada;
 se uma atendente de U.T.I 
proibir a minha entrada
eu ficarei aos berros 
gritarei ao mundo inteiro 
e correrei como gostaria que você pudesse correr
a plenos pulmões 
só eu e o vento
até chegar a você.

o choque é grande
a saudade me queima o peito 
mas as carnes brancas 
não se comparam 
aos nossos sorrisos coloridos
no meio daquelas nuvens de fumaça 
da cidade
nem àqueles anos 
com gosto 
de acerola tirada do pé.

e aí 
nessa idade que imaginamos ser mais sensata
eu sento e apoio o rosto molhado na beirada da cama 
olho pro teto recém-pintado 
e penso que você poderia ainda estar ao meu lado 
não fosse
essa coisa
que gostam de chamar 
de morte.

aí eu também penso
''e se eu fosse morar com você?'', 
já que você não pode vir me ver, 
e aí então eu enxugo o rosto
abro a gaveta
tiro as tintas
sujo os dedos 
molho os pincéis
e não necessariamente nessa ordem 
pinto nossa casa 
nas estrelas.

eu, você
você, eu
eu você
você eu
e as estrelas.

vovô, 
somos suco de caju.

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