segunda-feira, 15 de julho de 2013

acaso me quiseres

a foto borrada não capturou. não conseguiu, até desistiu, nem tentou. nunca que conseguiria.
  *
aquele momento lindo. a luz perfeita, um dia com cheiro de madeira fresca, floresta depois de chuva de verão. ele estava montado em seu cavalo preferido, a jaqueta amarela, a terra molhada. as árvores lá atrás, de apoio.
há mil quilômetros, ela dormia. dormia no escuro, na esperança de acordar sem nenhum arranhão nas costas, com as pernas já bem depiladas e prontas pra sair. queria acordar vestida, arrumada, os cabelos penteados. perfume francês nos couros, carne mais ou menos coberta. o brilho perfeito, o contorno da boca feito e os olhos acesos. dormia. dormia porque foi dormir não mais querendo acordar. dormia, suspirava baixinho, respirava tão lentamente que o peito quase não subia. a camisola rasgada, porque não teve tempo nem dinheiro pra comprar uma nova, dessas bonitinhas, de renda vermelha ou branca.
ele corria. corria porque gostava de sentir o vento bater no rosto, que era gostoso, que era bom demais. era lindo. lindo de se ver. se alguém o visse, não conseguia desviar o olhar. a barba era tão bonita, os olhos brilhosos, as bochechas rosadas da praia. corria. corria porque tudo melhorava quando ele lutava contra o vento, era como se atravessasse fronteiras, enganasse o tempo. corria até não poder mais, porque queria correr correr e correr além; não queria ver fim nem tampouco saber onde começou. só correr... e correr...
e ela acordou; e ele cansou de correr.
ela levantou da cama, ficou nua em pêlo contra a cortina mais ou menos transparente do seu quarto. os arranhões estavam mais ou menos cicatrizados. ''as costas machucadas revelam suas raízes'', ela pensava, tentando convencer a si mesma de que aquilo não atrapalharia em nada. correu pra baixo do chuveiro, com um gosto amargo de mofo na boca. o que tinha comido no almoço, pelo amor de deus? castanha do pará apodrecida, resto de coração de galinha - cru, cru. por certo, só pode ser, é a única explicação. sim, sim, deve ter sido isso. entrou debaixo do chuveiro, sentiu o primeiro jato frio, depois o morno. observou enquanto a água escorria sob o seus braços, franziu o cenho quando os pingos atingiram os arranhões nas costas. depilou as pernas e só se cortou três vezes. estava melhorando nisso, pois sim. três filetes de sangue escorreram. por uma fração de piscar de olho, o que desceu pro ralo tornou-se vermelho. esfregou os cabelos, deixou tudo descer, escorrer, ir embora. tentou renovar as esperanças. fechou os olhos com força e viu o nada. a escuridão. o preto tão preto que chega a ser branco. abriu-os novamente. ainda estava dentro do banheiro, o box com cheiro de sabonete. escorregava ali, sentiu o seio endurecer, uma rajada de vento entrando pela porta do banheiro.
ele cansou. o suor escorregava por toda a sua camisa, pela jaqueta, tentava grudar a calça no corpo. entregou o cavalo ao tratador, deu uns tapinhas e jogou-lhe umas cenouras. entrou no seu carro novinho em folha e deu a partida.
pronta, prontíssima. fez uma lista mental: banho. pernas. perfume. casaco de couro. saia vermelha. saltos. beber água. chaves. rua. tudo ok. escovou os dentes, retocou o batom e saiu. as chaves, a porta pichada, caindo aos pedaços. dentro do ônibus, enquanto as pessoas viviam em suas próprias mentes, ela pensou no que faria se tivesse uma casa só dela, um salário fixo, uma família. queria flores na janela, e sempre as regaria muito bem. só. e um sorriso verdadeiro.
fim da linha.
ela desceu do ônibus, ajeitou a saia e foi pra sua esquina.
ele xingou o sinal, que tanto demorava a abrir, e decidiu parar e tomar uma água de coco.
em pé, pensou que o salto estava começando a apertar os seus dedos, e que os dedos estavam pintados de verde-esmeralda, e que tomara que o batom não borre, não saia, não perca o gosto de framboesa.
sentado na mesinha de madeira do bar, olhou pro anel molhado pela água de coco. suspirou. que ondas. olhou longe. opa. tirou seu iPhone do bolso, tocou na tela e fotografou a moça ali parada, que também olhava o mar.
**
e aí, na tela do celular dele, ela não sorria. 
e ela nem sabia que ele existia. 
mas os passos estavam quase lá, quase lá, quase lá. 

***
ela poderia jurar que ele falou em flores essas que apodrecem sobre o seu ventre. 

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